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Amazônias - Gente de Opinião
Amazônias

Manaus é muito menor que a Amazônia


 
 
 
MUSEU DA AMAZÔNIA
Amazônias
 
MANAUS, AM — Que Amazônia é essa? Com o objetivo de ouvir as diferentes respostas que existem para essa pergunta, o Musa inicia uma série de entrevistas, reunidas sob o título de Museu imaginário. O primeiro entrevistado é o escritor Milton Hatoum.
 
Autor de contos, romances e novelas; colunista de jornais; e, recentemente, curador de um livro de fotografias, Hatoum vem sendo apontado pela crítica como um dos mais importantes escritores brasileiros dos últimos tempos. Mas nesta entrevista, ele é, acima de tudo, alguém que se interessa por pensar a Amazônia.
 
Nascido em Manaus, Hatoum fez da cidade pano de fundo ou personagem de livros como Dois irmãos e Órfãos do Eldorado. No trabalho de curadoria e apresentação do livro Norte, que traz fotografias do francês Marcel Gautherout (1910-1996), traçou, junto com Samuel Titan Jr., o que chama de “uma viagem do olhar pela Amazônia”.
 
A entrevista com Hatoum teve duas perguntas “guias”: o que você colocaria em um museu da sua vida e o que você gostaria de ver em um museu da Amazônia.
 
Confira abaixo trechos da entrevista ou clique aqui para baixar o arquivo na íntegra.
 
Você freqüentemente menciona que não reconhece mais Manaus. O que mudou? Foi a estrutura física apenas ou algo mais sutil?
Manaus, nos últimos 30 ou 40 anos, talvez tenha sido a cidade menos preservada e mais destruída do Brasil. Isso por várias razões: pela falta de planejamento; pela ignorância dos administradores; pela falta de visão dos administradores – visão urbana, histórica; falta de sensibilidade cultural e também uma falta de amor pela cidade. Esse é um dos lados que gerou essa transformação negativa. Outra coisa é a especulação imobiliária, que é totalmente selvagem, e a falta de critérios para construir, implantar zonas comerciais, residenciais. A cidade tem que ser pensada, refletida, não pode ser jogada, não pode crescer de uma forma aleatória. O que eu acho é que a intervenção urbana e arquitetônica [em Manaus] é muito burra. Optaram pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia ao clima. Quer dizer, optou-se por uma espécie de cópia, de “macaquiação”, de São Paulo, que por sua vez é uma cópia muito precária de Miami, vamos dizer assim. E do Rio de Janeiro também. O Rio ainda tem uma coisa dos anos 50 e 60 que é interessante, que tem a ver com a escala urbana, com a paisagem, com os morros e montanhas, com o relevo e com o mar. No caso de Manaus, você pode notar que os edifícios não são avarandados, não têm proteção solar, não são pensados em função do clima. Eu não falo nem da opção estética, que é horrorosa na maioria das vezes. Poucos arquitetos entenderam essa cidade e um deles foi Severiano Porto [1930-]. Por isso, o rosto da cidade se tornou um pouco monstruoso, as praças estão sufocadas, não há mais uma relação orgânica entre a natureza e o urbano, que havia na minha infância e juventude. Foram criados pouquíssimos novos parques – o parque do Bilhar, o Jefferson Peres, mas é muito pouco para uma cidade que não é arborizada, que não tem calçadas. O transporte urbano é o pior do Brasil, talvez um dos piores da America do Sul. A habitação popular é uma espécie de canil, e isso eu falo nos meus romances, no Cinzas do Norte. A implantação de conjuntos habitacionais é totalmente irracional, arranca-se a floresta e é como se as pessoas não necessitassem de sombra. Então, é de uma burrice, de uma ignorância estarrecedora. Isso tudo me entristece. Não sei se me entristece, acho que me revolta, mais do que me entristece.
 
E você comentou que um pouco dessa sua revolta você coloca nos livros.
Manaus é muito menor que a Amazônia - Gente de Opinião

"Acho que a intervenção urbana e arquitetônica é muito burra. Optaram pela verticalização de uma cidade em que venta pouco, onde há espaço para uma expansão horizontal, onde uma arquitetura horizontal é mais propícia ao clima" /DIVULGAÇÃO.

Meus livros, sobretudo Dois irmãos e Cinzas do Norte, narram essa destruição de Manaus. São romances amargos, como todo romance. O romance não é uma receita de bem-viver, isso é autoajuda. No Dois irmãos, Manaus é quase uma personagem. Você pode imaginar que haja até implicações ideológicas. Não que o romance contenha uma mensagem explícita, porque eu também acho isso muito frágil – romance denúncia, arte denúncia, eu não acredito em nada disso. Acho que a arte não responde a nada, ela faz perguntas, insinua coisas, te convida a refletir sobre teu tempo, sobre você mesmo. Mas o Cinzas do Norte, que é um romance mais ambicioso, não fala apenas de Manaus, tem um pano de fundo histórico da ditadura, tem a relação com o Rio de Janeiro, com a Europa, tem essa ânsia do personagem. É uma espécie de despedida também de uma cidade, de um mundo, que não existe mais.
 
Você diria que ver Manaus é ver a Amazônia ou isso é um erro?
Manaus é muito menor que a Amazônia, Manaus é um ponto na Amazônia. Eu espero que Manaus não seja a metonímia da Amazônia, porque se for, nós estamos perdidos. Porque Manaus não deu certo como cidade. Essa cidade poderia ser linda, fantástica. E você aqui sabe que está na Amazônia, mesmo com essa cidade indecorosa, você sente que a presença da natureza é muito poderosa. Não é uma visão nostálgica, eu não tenho nostalgia, mas na minha juventude, há 30 ou 40 anos atrás, Manaus era uma cidade mais humana, porque ela convivia com a natureza. Depois, o que aconteceu em Manaus foi um embrutecimento da vida urbana, um tipo de implantação habitacional, comercial e industrial inconseqüente. E a partir de certo momento houve um processo de banimento da natureza. A natureza foi banida da cidade, uma cidade que está no coração da floresta. Então, é isso que é maluco.
 
O tema Amazônia hoje está muito em voga com assuntos como o aquecimento global. Não seria uma chance, ou talvez uma esperança, de reverter esse quadro?
Eu acho que quem pode reverter isso, de um lado, é o povo do Amazonas, no voto. Por outro lado, o poder judiciário, os procuradores, juízes. Eu acho que a situação é muito grave e se não houver uma conscientização da população... As coisas têm que mudar de baixo para cima. Não sei o que vai acontecer, mas o que eu sei é que Belém investiu na sua memória histórica e deu certo, apesar dos muitos problemas que existem em Belém. Nós temos um porto abandonado, uma área portuária abandonada, um centro tomado por camelôs, uma sujeira incrível, uma revitalização do mercado municipal que está parada há anos. Se agora começasse uma administração eficiente, acho que ainda demoraria muito tempo para recuperar a dignidade dessa cidade e do povo que mora aqui. Agora, a Amazônia é muito plural. Quando você fala Amazônia, você está falando do vale do Juruá ou do rio Negro? Do Tapajós ou do Purus? De Roraima ou de Marajó? É difícil falar de uma Amazônia e nisso o Euclides da Cunha (1866-1909) foi genial, porque diante da grandeza e da complexidade da região ele capitulou e disse: nós vamos precisar ainda de muito estudo, de séculos de estudo para começar a entender essa região. Daí essa frase famosa dele que está no nosso prefácio, uma frase da apresentação que ele fez do livro Inferno verde, do Alberto Rangel (1871-1945). Ele diz: a Amazônia é um infinito que se dosa pouco a pouco, lentamente, torturantemente. Quer dizer, você tem que se aproximar de uma microrregião e entender aquilo. Entender que tipo de vocação econômica, cultural, quem habita ali. Acho que só o Acre fez esse estudo detalhado, de microrregiões, de planejamento, antropológico, econômico, geográfico, da riqueza do solo e subsolo. Talvez seja pedir muito para o governador do Mato Grosso, o motosserra de ouro.
 
Milton, se você fosse fazer um museu da sua vida, com qualquer coisa – cheiros, pessoas, situações, tudo –, o que você colocaria?
Mas a minha vida não cabe em um museu, ela é muito pequena e insignificante para fazer parte de um museu, ela é totalmente irrelevante. Um museu eu acho que merece temas ou personagens mais grandiosos. Eu vejo um museu como uma relação dinâmica entre os freqüentadores e o mundo. O museu não é um espaço morto, é um espaço dinâmico, vivo. Um museu para mim é o acesso, ao mesmo tempo, ao sonho, à imaginação e ao conhecimento. Eu quero entrar em museu e quando eu sair, quero ter refletido, ter sonhado, ter imaginado coisas que eu não teria imaginado, refletido nem sonhado antes de entrar nesse lugar. Para mim o museu é um espaço de muitas surpresas.
 
E em um museu da Amazônia, o que você acha que tem que ter? Ou o que você gostaria de ver aí?
Eu gostaria de entender um pouco mais o que há por trás desse mistério da natureza, porque para mim a natureza é sempre muito complexa e misteriosa, quando você descobre uma coisa há sempre milhões de outras para serem descobertas. Eu queria também me surpreender nesse museu da Amazônia, queria conhecer essa região muito além do estereótipo, da aparência, do clichê, dos jargões que circulam por aí, nem que seja nessa linha euclidiana do infinito que se dosa. Eu queria conhecer algumas partículas desse infinito.
 
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