Quarta-feira, 10 de maio de 2023 - 10h15
Esse texto foi elaborado para ampla
divulgação, o que também chamamos de divulgação científica ou popularização da
ciência. É uma narrativa, com fundamentos lógicos e verificáveis, contudo, tem
a chancela, a experiência creditícia de quem vive as aspirações do seu povo no
dia a dia: a cacica Uruba. Então, não deixa de ser uma bela composição, a seis
mãos, entre intuição do conhecimento e expressão na primeira pessoa. É um texto
predominantemente feminino – feminino-indígena – e ata teoria e prática. Merece
ser lido, se não fosse por outras razões, isso já bastaria, porque difunde
Ciência e mundo da vida.
Nossa história
se inicia no auge dos debates sobre a inclusão dos direitos indígenas em 1988, quando Ailton Krenak e apoiadores
subiram rumo ao Congresso Nacional em defesa aos povos originários. Desde
então, a Constituição Federal de 1988 representa uma quebra na visão
colonialista, abrindo espaço para uma postura de respeito à identidade cultural
e aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas – assim,
ficando implícito o direito já́ existente às terras por eles habitadas.
O artigo. 231,
da CF88 (BRASIL, 1988), diz: "São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E mais, o § 4o diz, "as terras de que trata este artigo são inalienáveis
e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis".
Paradoxalmente, as terras indígenas vêm sendo cada vez mais invadidas e
atacadas por fazendeiros, madeireiros, grileiros, garimpeiros provocando
grandes desmatamentos, genocídios e perda grande dos conhecimentos e população
indígena brasileira.
Em 2018, o antropólogo Stephen Baines
dizia à Agência Brasil, citando convenções da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos
povos indígenas (PEDUZZI, 2018):
(...) é difícil para os índios planejar
grandes voos do ponto de vista de recursos, sem que, antes, seja resolvida a
questão da gestão territorial, o que inclui a segurança jurídica que só é
possível a eles após terem suas terras demarcadas e homologadas. É fundamental
que se tenha respeito pelos índios e pela sua forma de viver e produzir. Para
tanto, é necessária a efetivação dos direitos previstos tanto na Constituição
como pelas convenções internacionais.
De acordo
com o Instituto Socioambiental (ISA), somente 13,8% de todas as terras do
Brasil são reservadas aos povos originários. No país, há 732 terras indígenas
(em diferentes etapas do processo de demarcação). Dessas, somente 487
foram homologadas (quando o processo de demarcação foi concluído) desde 1988. É
importante ressaltar que o governo, entre os anos de 2019 e 2022, foi o primeiro e único a não demarcar nenhuma terra
indígena (ACERVO ISA, 2023).
No relatório de violência contra os povos indígenas no Brasil,
com dados do ano de 2019, lê-se (CIMI, 2019, p. 6):
O aumento vertiginoso de invasões, grilagens,
incêndios criminosos, loteamentos ilegais, ameaças, conflitos, descasos no
atendimento à saúde e à educação, criminalização, dentre outras violações a
seus direitos, evidencia que os indígenas enfrentam um dos momentos históricos
mais desafiadores desde a invasão dos colonizadores.
Ainda
dentro do relatório encontramos o seguinte dado: “Segundo levantamento do
Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento nas terras indígenas da região
amazônica, entre agosto de 2018 e julho de 2019, foi o maior registrado em 11
anos, com 42,6 mil hectares derrubados” (ACERVO ISA, 2023).
De acordo com o dossiê lançado no dia 16 de Marco de 2023, um
dossiê inédito da Aliança em Defesa dos territórios, a expansão dos garimpos
ilegais em terras indígenas está fortemente ligada à fragilidade das leis, à
falta de fiscalização, à omissão das autoridades e à vulnerabilidade das
regiões exploradas. O dossiê intitulado “Terra Rasgada: como avança o garimpo
na Amazônia brasileira” (ACERVO ISA, 2023), apresenta dados de terras Yanomami,
Munduruku e Kayapó, que comprovam que o garimpo nas Terras Indígenas (TIs) na
região cresceu em 495% entre 2010 e 2020, com a exploração de ouro
principalmente. As afirmações contidas no documento, que traz consigo
comprovações dos fatos descritos, sinaliza as graves violações aos Direitos dos
Povos Indígenas, como o direito à vida, ao território, à autodeterminação, ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, à segurança e direito à saúde e
alimentação.
Um estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) (MACIEIRA, 2022), que leva em consideração os anos de 2019 e 2020,
analisou com profundidade as permissões de extração de substâncias minerais,
lavra garimpeira no País. Dentre os resultados, tem-se que 90% das áreas de
exploração mineral estavam fora de locais autorizados. Esta realidade é
observada em diversos territórios indígenas, a extração de minerais, as
invasões de terra indígenas com implementação da monocultura, grileiros,
fazendeiros, genocídios, desmatamento, incêndios, e várias outras formas de
violência contra o povo indígena, mas também contra toda humanidade.
Vale aqui ressaltar a importância do território, a relação que
indígenas possuem com a terra. Diferente do que a maioria da população
considera, a luta pelo território não é uma luta pela posse do território como
bem material, e sim pela luta do território em forma de defesa e proteção de
toda humanidade. A não compreensão da cosmovisão e cosmopolítica da população
indígena tem prejudicado a 523 anos o respeito e apoio às causas indígenas.
A relação que indígenas possuem com território, natureza, terra,
necessita de escuta e espaço de fala. Como cita Kena Azevedo Chaves: “Povos
indígenas encontram em seus territórios a base material para organização da
vida” (TZUL, 2015 apud CHAVES, 2021, p. 52). É também através do
território que sua existência enquanto povo, a partir de uma perspectiva
identitária ligada as cosmologias especificas, se faz possível. (ALMEIDA, 2012 apud
CHAVES, 2021). Ainda sobre a cosmologia indígena, temos as fortes palavras de
Fabiane Medina da Cruz em entrevista para PEITA em 2021 (CRUZ, 2020, p. 48):
(...) conforme a economia política
ancestral, o mundo tem uma natureza autônoma, a qual não podemos possuir. A
natureza e os elementos da cosmologia, além de possuírem espíritos próprios,
são coisas que não podem ser ‘dominadas’ pelos seres humanos, uma vez que o
cosmos tem muito mais poder sobre a vida dos seres vivos do que o contrário.
Portanto, a relação da pessoa indígena com o mundo, a vida e a natureza é uma
relação muito mais de respeito do que dominação.
Povos indígenas celebram a terra, pedem permissão à terra e
lutam pelos territórios e libertação dos invasores e devastadores dos
ecossistemas, lutam pela harmonia com a Mãe Terra, lutando por todos nós, 8
bilhões de seres humanos espalhados ao Mundo.
O Brasil, infelizmente retornou ao “Mapa da fome”, conforme
relatório da FAO (Food
and Agriculture Organization) publicado no ano de 2022 (FAO, 2022). Esse
cenário de insegurança alimentar e fome intensificou-se nos últimos anos e a
cosmovisão indígena de 300 povos do País pode contribuir no processo de
segurança alimentar, como propõe o CIMI (2023) na notícia vinculada do dia 28/03/2023 com o tema:
“Territórios Livres”, e o lema “Povos sem fome”.
Dia 11 de Janeiro de 2023,
tivemos a honra de acompanharmos a posse de Sonia Guajajara ao primeiro e
histórico Ministério dos Povos Indígenas criado no governo Lula, em seu
terceiro mandato, 2023, em resposta às reinvindicações históricas do movimento
indígena (cacica Uruba). Durante a sua posse, Sonia ressaltou:
Precisamos
voltar a pensar as políticas de educação para os indígenas, valorizando as
identidades plurais, formando professores indígenas, ampliando o acesso e a
permanência no ensino superior. As terras indígenas, os territórios habitados
por demais povos e comunidades tradicionais, e as unidades de conservação são
essenciais para conter o desmatamento no Brasil e para combater a emergência
climática enfrentada por toda a humanidade. Sabemos que não será fácil superar
522 anos em quatro, mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande
retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um
Brasil sem nós (G1, 2023, p. 1).
Junto com a criação do
Ministério e a tomada de posse, veio a realidade enfrentada de povos indígenas
entre os anos de 2019 e 2022. Encontravam-se invisibilizados, como se foi
possível perceber com a crise humanitária enfrentada pelo povo Yanomami, com
mais de 11.000 casos de malária, mortes causadas por mercúrio e desnutrição,
violência sexual, assassinatos e desaparecimentos, como relata Ricardo Weibe
Tapeba, secretário de saúde indígenas (SESAI).
Diversos territórios
indígenas aguardam a emissão da portaria declaratória pelo Ministério da
Justiça, como é o caso do TI Barra Velha, situado no extremo sul da Bahia.
Desde 2009 o TI teve publicado o relatório circunstanciado de identificação e
delimitação da área pela Funai, e, mesmo sem nenhum impedimento para a emissão,
ainda não teve a portaria emitida.
Vale aqui ressaltar a
instrução normativa 09/2020 publicada pela Funai sob o último governo, que
evidenciou a pressão a esses territórios, liberando a certificação de fazendas
sobre terras indígenas ainda não homologadas, causando conflitos, violências e
mortes. Durante este período, o efeito foi imediato após a normativa, um total
de 51 fazendas certificadas sobre o território indígena Barra Velha e
Comexatibá, sobrepostas integralmente às terras indígenas. Entre abril e agosto
de 2020, foram 10 certificações de propriedades sobre o TI Comexatibá e 41
sobre o TI Barra Velha, sendo que, a maioria pertencentes à fazendeiros
derrotados no STJ. De acordo com o CIMI e acompanhamento de fatos diários
ocorridos no TI Barra Velha, fazendeiros têm negociado e financiado atividades
nestas áreas, aumentando a pressão e devastação do território já reconhecido
oficialmente como tradicional ocupado pelo povo Pataxó (CIMI, 2023).
No dia dos Povos Indígenas, 19 de abril
de 2023, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), anunciou a criação de
6 grupos técnicos para identificação e delimitação de Terras indígenas nos
estados do Acre, Amazonas, Rondônia e Rio Grande do Sul. Atos estes que já
foram assinados pela presidenta da FUNAI, Joenia Wapichana, juntamente com a
ministra dos povos indígenas Sonia Guajajara.
Do dia 24 ao dia 28 de abril de 2023,
aconteceu a maior mobilização indígena em Brasília (DF), o ATL (Acampamento
Terra Livre), que está em sua 19 edição e contou, como uma das pautas centrais,
a emergência climática, reforçando a importância da demarcação de terras
indígenas, pois funcionam contra o desmatamento, já identificado no combate ao
aquecimento global. Foi decretado, durante o evento, na quarta feira dia 26, a
emergência climática e o debate sobre a contribuição e comprometimento dos
povos originários na solução. Foi também anunciada a reativação dos trabalhos
do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC) da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB), para que sirva como posicionamento do movimento
indígena na discussão sobre o tema em nível nacional e no exterior, aumentando
assim a interlocução com os governos. Foram discutidas também ações em relação
ao Judiciário com a principal demanda de rejeição a tese do marcos temporal,
que já se arrasta há anos em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) e
deve ser retomado pela Corte dia 7 de Junho de 2023.
Será difícil consertar tudo que foi
abandonado durante este período de 2019 à 2022, mas muitos espaços de falas
estão sendo abertos, muitas denúncias estão sendo ouvidas e aguardamos que 2023
seja o início de grandes resoluções, que a ATL seja sementes de muitas soluções
e atenções às comunidades indígenas que resistem, persistem e insistem na busca
de um Mundo melhor a todos e às suas vidas!
REFERÊNCIAS
ACERVO ISA. Terra rasgada: como avança o garimpo na
Amazônia brasileira. Brasília: Aliança em
Defesa dos Territórios, 2023, 98 p. Disponível em:
https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/terra-rasgada-como-avanca-o-garimpo-na-amazonia-brasileira.
Acesso em: 20 mar. 2023.
BRASIL.
Constituição (1988). Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Emendas Constitucionais. Brasília,
DF: Presidência da República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06
out. 2020.
CHAVES, Kena Azevedo. Corpo-território, reprodução social e
cosmopolítica: reflexões a partir das lutas das mulheres indígenas no Brasil. Scripta Nova Revista Electrónica de
Geografía y Ciencias Sociales, Bracelona, v. 25, n. 4, 2021. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/357571919_Corpo-territorio_reproducao_social_e_cosmopolitica_reflexoes_a_partir_das_lutas_das_mulheres_indigenas_no_Brasil.
Acesso em: 3 abr. 2023.
CIMI - CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Alvo de violência, povo Pataxó cobra
demarcação e presença do governo federal no extremo sul da Bahia. CIMI,
2023. Disponível em:
https://cimi.org.br/2023/02/violencia-pataxo-demarcacao-governo-federal/.
Acesso em: 3 abr. 2023.
CIMI - CONSELHO ÍNDIGENA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os povos indígenas
no Brasil: dados 2019. CIMI, 2020. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2020/10/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2019-cimi.pdf.
Acesso em: 03 Abr. 2023.
CIMI. Semana dos
povos indígenas. Disponível em:
https://cimi.org.br/2023/03/semana-povos-indigenas-2023-cimi/. Acesso em: 03
Abr. 2023.
CRUZ, Fabiane Medine. Feminismo Indígena ou Nhandutí Guasu Kunhã: a rede de mulheres
indígenas pelos direitos ancestrais e reconhecimento ético. In: DORRICO,
Julie; DANNER, Fernando; DANNER, Leno Francisco (orgs.). Literatura indígena
brasileira contemporânea: autoria, autonomia e ativismo. Porto ALegre:
Editora Fi, 2020. Disponível em:
https://peita.me/blogs/news/feminismo-indigena-e-rede-mulheres-indigenas.
Acesso em: 3 abr. 2023.
FAO. The State of Food and Agriculture 2022. Leveraging
automation in agriculture for transforming agrifood systems. Rome: FAO, 2022.
https://doi.org/10.4060/cb9479en. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb9479en/cb9479en.pdf. Acesso
em: 3 abr. 2023.
G1. No
comando do Ministério dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara é a primeira
indígena a chefiar uma pasta. Jornal Nacional, 2023. Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/01/11/no-comando-do-ministerio-dos-povos-indigenas-sonia-guajajara-e-a-primeira-indigena-a-chefiar-uma-pasta.ghtml.
Acesso em: 3 abr. 2023.
INSTITUTO
UPDATE. Yanomami, defesa de territórios
e a importância do Ministério dos Povos Indígenas. Instituto Update,
2023. Disponível em:
https://www.institutoupdate.org.br/yanomami-defesa-de-territorios-e-a-importancia-do-ministerio-dos-povos-indigenas/.
Acesso em: 3 abr. 2023.
MACIEIRA,
Luana. “Ouro que dá em árvore”:
artigo descreve como o garimpo ilegal avança sobre terras indígenas. UFMG
Notícias, 2022. Disponível em:
https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ouro-que-da-em-arvore. Acesso em: 20 mar.
2023.
PEDUZZI, Pedro. Um milhão de
indígenas brasileiros buscam alternativas para sobreviver. Agência
Brasil, 2018. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-04/um-milhao-de-indigenas-brasileiros-buscam-alternativas-para-sobreviver.
Acesso em: 3 abr. 2023.
TERRAS
INDÍGENAS. Início: Terras Indígenas
no Brasil. 2023. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. Coleção
contextos da ciência. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010.
BAGELE, Chilisa. Indigenous
research methodologies. Thousand Oaks, California: Sage Publications, 2012.
LINDA, Tuhiwai Smith. Decolonizing
methodologies: research and indigenous peoples. London: Zed Books, 2012.
TROUILLOT, Michel-Rolph, Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston,
Mass.: Beacon Press, 1995.
TZUL, Gladys. Mujeres indígenas: historias de la
reproducción de la vida en Guatemala. Una reflexión a partir de la visita de
Silvia Federici. Bajo el Volcán, v.
15, n. 22, p. 91–99, 2015.
Em primeiro lugar, temos que verificar que sempre se trata de uma Autoeducação Política. Parte-se do entendimento de que sem a predisposição individ
O Livro Teorias do Estado: Estado Moderno e Estado Direito
A Teoria do Estado sob a Ótica da Teoria Política, do professor Vinício Carrilho Martinez - oferece uma leitura acessível e profunda na formação, es
Ensaio sobre a Forma-Estado no Brasil contemporâneo
-- Viva a democracia! -- O Fascismo não passará!!Vinício Carrilho Martinez – Doutor em Ciências Sociais/UNESPTainá Reis – Doutora em Sociologia/
Quando vivemos tempos de retrocesso, em que verdadeiras organizações criminosas assaltam o Estado, os cofres públicos, algumas instituiçõe