Porto Velho (RO) sábado, 18 de maio de 2024
opsfasdfas
×
Gente de Opinião

Dom Moacyr

O caminho da solidariedade


 
     Estamos próximos do período quaresmal: de um lado, o Carnaval com seus desfiles e blocos e ainda, famílias que se preparam para a Quaresma com  encontros comunitários e retiros. De outro, uma tragédia ecológica prevista: a inundação do Rio Madeira atingindo e crucificando milhares de famílias e inúmeras comunidades tradicionais, impactadas ou não pelas hidrelétricas, que também foram afetadas e estão isoladas.
 
     Das inundações, disse certa vez Eduardo Galeano: “Espero que elas sirvam pelo menos para ressaltar que devemos deixar de chamá-las catástrofes naturais. Sim, são catástrofes, porém são o resultado do sistema de poder que enviou o clima ao manicômio”.
 
Em meio ao sofrimento de tantas famílias, o caminho da solidariedade toma forma e somos possuídos pela força da vida, da esperança, do amor. Somos humanos; somos cristãos.A Quaresma é sempre um convite à solidariedade. A CNBB promove, todos os anos, a Campanha da Fraternidade. Sempre em torno de um tema social. O deste ano é o combate ao tráfico humano e tem como lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1)
 
     A liturgia deste domingo propõe uma nova justiça (Mt 5,38-48). Mostra que a força do amor solidário é capaz de interromper toda forma de violência. Somos convidados a realizar ações capazes de afirmar a dignidade e a igualdade, não a submissão passiva diante de situações opressoras; a viver a fraternidade com quem necessita de nossa ajuda. Paulo Apóstolo incentiva-nos a ser o lugar onde Deus reside e se revela a todos (1Cor 3,16-23). Dessa forma estaremos em comunhão com Deus e seremos santos (Lv 19,1-2.17-18), pois a santidade passa também pelo amor ao próximo.
 
     O papa Francisco, em sua Mensagem para a Quaresma de 2014, exorta-nos a trilhar o caminho da solidariedade que pressupõe o “caminho pessoal e comunitário de conversão”:
 
     Por ocasião da Quaresma, ofereço-vos algumas reflexões com a esperança de que possam servir para o caminho pessoal e comunitário de conversão. Como motivo inspirador, tomei a frase de São Paulo: “Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9).
 
     Tais palavras dizem-nos, antes de tudo, qual é o estilo de Deus. Deus não Se revela através dos meios do poder e da riqueza do mundo, mas com os da fragilidade e da pobreza: “sendo rico, Se fez pobre por vós”. Cristo, o Filho eterno de Deus, igual ao Pai em poder e glória, fez-Se pobre; desceu ao nosso meio, aproximou-Se de cada um de nós; despojou-Se, esvaziou-Se, para Se tornar em tudo semelhante a nós (Fil 2,7; Heb 4,15).
 
     A encarnação de Deus é um grande mistério. A razão de tudo isso é o amor divino: um amor que é graça, generosidade, desejo de proximidade, não hesitando em doar-Se e sacrificar-Se por suas amadas criaturas. O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Foi o que Deus fez conosco. Na realidade, Jesus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano (GS 22).
 
     A finalidade de Jesus de se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas, como diz São Paulo, “para vos enriquecer com a sua pobreza”. Não se trata dum jogo de palavras, pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! Quando Jesus desce às águas do Jordão e pede a João Batista para batizá-lo, não o faz porque tem necessidade de penitência, de conversão; mas fá-lo para se colocar no meio do povo necessitado de perdão, no meio de nós pecadores, e carregar sobre Si o peso dos nossos pecados.
 
     Este foi o caminho que Ele escolheu para nos consolar, salvar, libertar da nossa miséria. Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e nos torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-Se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na beira da estrada (Lc 10,25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha. A pobreza de Cristo, que nos enriquece, é Ele fazer-Se carne, tomar sobre Si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus. Quando Jesus convida-nos a tomar sobre nós o seu jugo suave (Mt 11,30), convida-nos a enriquecer-nos com esta sua rica pobreza e pobre riqueza, a partilhar com Ele o seu Espírito filial e fraterno, a tornar-nos filhos no Filho, irmãos no Irmão Primogênito (Rm 8,29).
 
     Foi dito que a única verdadeira tristeza é não ser santos (Léon Bloy); poder-se-ia dizer também que só há uma verdadeira miséria: é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo. Poderíamos pensar que este caminho da pobreza fora o de Jesus, mas não o nosso: nós, que viemos depois d'Ele, podemos salvar o mundo com meios humanos adequados. Isto não é verdade. Em cada época e lugar, Deus continua a salvar os homens e o mundo por meio da pobreza de Cristo, que Se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres.
 
     À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para aliviá-las. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual.
 
     A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiênicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.
 
     Não menos preocupante é a miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros, frequentemente jovem, se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspectivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se veem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína econômica, anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor.  O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.
 
     Possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo todas as pessoas.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSábado, 18 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Pentecostes: Comunidades de rosto humano!

Pentecostes: Comunidades de rosto humano!

Palavra de Dom Moacyr Grechi – Arcebispo Emérito de Porto Velho

Páscoa do povo brasileiro - Por Dom Moacyr Grechi

Páscoa do povo brasileiro - Por Dom Moacyr Grechi

Hoje reafirmamos a nossa fé na ressurreição de Cristo; somos uma Igreja Pascal. Na oração do Credo, proclamamos a ressurreição dos mortos e a vida ete

Verdade libertadora! Por Dom Moacyr Grechi

Verdade libertadora! Por Dom Moacyr Grechi

  A Igreja, convocada a fortalecer o povo de Deus na atual conjuntura, é chamada a estar ao lado daqueles “que perderam a esperança e a confiança no B

Lugar seguro para viver! - Por Dom Moacyr Grechi

Lugar seguro para viver! - Por Dom Moacyr Grechi

  Diante do aumento da violência agrária que atinge trabalhadores rurais, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores artesanais, defensores de di

Gente de Opinião Sábado, 18 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)