Porto Velho (RO) terça-feira, 8 de julho de 2025
opsfasdfas
×
Gente de Opinião

Sandra Castiel

Literatura: escritores e estilos


Literatura: escritores e estilos  - Gente de Opinião

I

    Espero que não a tenha perturbado, madame. A senhora não estava dormindo, estava? Mas acabei de dar o chá para minha patroa, e sobrou uma xícara tão gostosa, que pensei, talvez... 

...Não absolutamente, madame. Sempre preparo uma xícara de chá no final. Ela bebe na cama, após suas rezas, para se aquecer. Ponho a chaleira no fogo quando ela se ajoelha e digo para ela: “Agora não precisa rezar depressa demais”. Mas sempre ferve, antes que a minha patroa não chegue nem à metade. Sabe, madame, conhecemos tantas pessoas e todas precisam de preces— todas. Minha patroa mantém uma lista de nomes num livrinho vermelho. 

     Quando terminei de a cobrir — e a vi deitada, as mãos para fora e a cabeça no travesseiro —Tão bonitinha, não pude deixar de pensar: “Agora você parece exatamente com sua querida mãe, quando eu a deitava”.

                                                                                (Katherine Mansfield. A empregada de madame)

     O texto acima é um trecho de um conto da notável escritora neozelandesa, Katherine Mansfield, que viveu entre 1888 a 1923. Considerada modernista, a escritora destaca temas desafiadores para a época; inspirava-se em Oscar Wilde entre outros. Katherine foi inspiração para grandes nomes, como Clarice Lispector e Virgínia Woolf . Até os dias atuais, continua deleitando seus leitores e inspirando escritores, com seu estilo único.

     Chamou-me atenção na escrita de Katherine a forma original deste diálogo, em que o interlocutor não está presente (é omitido), apenas sugerido e indicado por meio de reticências. Neste quesito tudo fica claro para o leitor. Porém, pergunto-me: A empregada da madame serviria a outra senhora na mesma casa? Quem é patroa, afinal? 

    Minha percepção é que a empregada era muito antiga na casa, trabalhava para a família desde o tempo de sua “patroa”, de quem cuidara até o fim. Depois, dedicou-se a cuidar da filha da patroa.

    Como cuidadora da madame, agora também uma old lady, cujo estado mental está afetado, a empregada optou por poupá-la da morte da mãe e age como se a patroa ainda estivesse viva. Ou seja, primeiro “servira” o chá para a patroa; como “sobrou”, oferece   uma xícara para a Madame, fazendo parecer   uma situação de casualidade.

     Há outros aspectos a considerar neste breve discurso da empregada — narradora, que oferece ao leitor a possibilidade de conhecer um pouco da personalidade da “patroa” e, em consequência, um pouco de sua própria vida como empregada. Esta percepção está contida na mudança do tempo verbal usado pelo narrador (a empregada); temos aqui um narrador protagonista.

       No primeiro parágrafo, o narrador usa o tempo presente.  No segundo parágrafo, adota o tempo passado, além de assumir um ponto de vista subjetivo, possibilitando ao leitor uma compreensão verdadeira do cenário que a magnífica escritora nos apresenta através de seu narrador–protagonista-onisciente.    

    Outras observações poderiam ser feitas somente neste pequeno trecho do livro, coisas   subjacentes ao   dito, revelações que o leitor perceberá com leitura cuidadosa desta adorável obra.   

II

    Para fazer uma espécie de contraponto, no que tange à abordagem do tema e das diferenças na expressão escrita, trago-lhes o que considero referência da literatura contemporânea. Trata-se do romance SUÍTE EM QUATRO MOVIMENTOS, de autoria da escritora escocesa Ali Smith.  O nome de Ali é destaque entre os mais ousados e inventivos ficcionistas da atualidade.

    A história acontece em Greenwhich—distrito aristocrático de Londres, onde um casal costuma abrir sua mansão histórica, com o objetivo de integrar diferenças; os convidados normalmente são casais gays, estrangeiros e outros que eles incluem na lista de “excentricidades”.  

   Mark, jovem adulto, eventual frequentador dos referidos banquetes, não estava motivado a comparecer ao evento; porém, mudou de opinião ao deparar- se com um belo homem, enquanto caminhava pelo centro do vilarejo; a conexão prometia.

     Apresentaram-se rapidamente, conversaram sobre banalidades, e o sorriso de Miles, o belo homem, encantou Mark.  Minutos depois, pareciam velhos amigos. Foi então que Mark convenceu Miles a acompanhá-lo ao jantar daquela noite.

      Ambientação luxuosa, todos à mesa, entre vinhos raríssimos, tilintar de cristais e talheres de prata, conversas e risos.

     No decorrer do requintado jantar, após o prato principal, um dos convidados levanta-se da mesa, sobe as escadas que levam ao segundo andar e tranca-se no quarto de hóspedes. É Miles.

     Ao longo dos dias, semanas, meses, ele se recusa a abrir a porta, porta esta que os proprietários não querem arrombar, porque se trata de uma preciosidade original da casa, desde o século XVIII.  Há que se considerar também que a fortuna do casal de proprietários se encontra diminuída; antes desse episódio, cogitavam vender a casa.

      A vida dos moradores tornou-se um inferno, com aquele estranho silencioso vivendo em sua casa.  Em poucos dias a notícia se espalhou, e a casa passou a ser a maior atração turística da vizinhança. Começa a busca pela identidade de Miles, o invasor, pessoa que todos os presentes ao jantar diziam não conhecer.   

Esta é a trama criada por Ali Smith.

                                                        III

      Como leitora, pergunto-me: 

— Como seria esse quarto de hóspede?

— O que eu faria lá dentro o dia inteiro?

— Teria um computar sobre a escrivaninha? Teria uma escrivaninha?

— Teria qualquer janela, de onde eu pudesse contemplar uma árvore, a lua e as estrelas, sem ser notada?

— Que tipo de alimento eu receberia por baixo da porta?

 Enfim, o que me levaria a atitude tão extrema?

 

 Excelente leitura!

 Livro:Suíte em quatro movimentos

 Autor: Ali Smith

 Editora: Companhia das letras

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoTerça-feira, 8 de julho de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Continhos marginais II - O terremoto e as flores

Empresária e rica, sua casa era uma alegria só: vivia entre filhos jovens, entre amigos e amores (estes, um de cada vez, enquanto durasse a paixão).

Nossa insustentável leveza

Nossa insustentável leveza

 Há alguns anos assisti, no Rio de Janeiro, a um filme sobre a vida pessoal de Charles Darwin, o cientista inglês cuja teoria contida no livro A Ori

Colecionadora de palavras

Colecionadora de palavras

Deixe- me apresentar a você, caro leitor, esta personagem que vive, há décadas, no interior do meu cérebro, e mistura suas memórias às minhas como s

Todas as Mulheres do Mundo

Todas as Mulheres do Mundo

Quisera eu ser psicanalista… Poder desvendar os complexos meandros da mente, até onde a limitada capacidade humana alcança.  Saber que há um acervo

Gente de Opinião Terça-feira, 8 de julho de 2025 | Porto Velho (RO)