Segunda-feira, 7 de julho de 2025 - 07h45
I
“Espero que não a tenha perturbado,
madame. A senhora não estava dormindo, estava? Mas acabei de dar o chá para
minha patroa, e sobrou uma xícara tão gostosa, que pensei, talvez...
...Não absolutamente, madame. Sempre preparo uma xícara de chá no final.
Ela bebe na cama, após suas rezas, para se aquecer. Ponho a chaleira no fogo
quando ela se ajoelha e digo para ela: “Agora não precisa rezar depressa demais”. Mas
sempre ferve, antes que a minha patroa não chegue nem à metade. Sabe, madame,
conhecemos tantas pessoas e todas precisam de preces— todas. Minha patroa
mantém uma lista de nomes num livrinho vermelho.
Quando terminei de a cobrir — e a vi deitada, as mãos
para fora e a cabeça no travesseiro —Tão bonitinha, não pude deixar de pensar:
“Agora você parece exatamente com sua querida mãe, quando eu a deitava”.
(Katherine Mansfield. A empregada de madame)
O texto
acima é um trecho de um conto da notável escritora neozelandesa, Katherine Mansfield, que viveu
entre 1888 a 1923. Considerada modernista, a escritora destaca temas desafiadores para a época; inspirava-se em Oscar Wilde entre
outros. Katherine foi inspiração para grandes nomes, como Clarice Lispector e
Virgínia Woolf . Até os dias atuais, continua deleitando seus leitores e
inspirando escritores, com seu estilo único.
Chamou-me
atenção na escrita de Katherine a forma original deste diálogo, em que o interlocutor não está presente (é omitido),
apenas sugerido e indicado por meio de reticências. Neste quesito tudo fica claro para o leitor. Porém, pergunto-me: A empregada da
madame serviria a outra senhora na mesma casa? Quem é patroa, afinal?
Minha percepção é que a empregada era muito antiga na casa, trabalhava para a família desde o
tempo de sua “patroa”, de quem cuidara até o fim. Depois, dedicou-se a cuidar
da filha da patroa.
Como cuidadora da
madame, agora também uma old lady, cujo estado mental está afetado, a empregada optou por poupá-la da
morte da mãe e age como se a patroa ainda estivesse viva. Ou seja, primeiro “servira”
o chá para a patroa; como “sobrou”, oferece
uma xícara para a Madame, fazendo
parecer uma situação de casualidade.
Há outros aspectos a considerar neste breve discurso
da empregada — narradora, que oferece ao leitor a possibilidade de conhecer um
pouco da personalidade da “patroa” e, em consequência, um pouco de sua própria
vida como empregada. Esta percepção está contida na mudança do tempo verbal
usado pelo narrador (a empregada); temos aqui um narrador protagonista.
No primeiro parágrafo, o narrador usa o tempo presente.
No segundo parágrafo, adota o tempo passado, além de assumir um ponto de vista
subjetivo, possibilitando ao leitor uma compreensão verdadeira do cenário que a magnífica escritora
nos apresenta através de seu narrador–protagonista-onisciente.
Outras observações poderiam ser feitas
somente neste pequeno trecho do livro, coisas subjacentes ao dito, revelações
que o leitor perceberá com leitura cuidadosa desta adorável obra.
II
Para fazer uma espécie
de contraponto, no que tange à abordagem do tema e das diferenças na expressão escrita, trago-lhes o que considero
referência da literatura contemporânea. Trata-se do romance SUÍTE EM QUATRO MOVIMENTOS,
de autoria da escritora escocesa Ali Smith. O nome de Ali é destaque
entre os mais ousados e inventivos ficcionistas da atualidade.
A história acontece em Greenwhich—distrito
aristocrático de Londres, onde um casal costuma abrir sua mansão histórica, com
o objetivo de integrar diferenças; os convidados normalmente são casais gays,
estrangeiros e outros que eles incluem na lista de “excentricidades”.
Mark, jovem adulto, eventual frequentador dos
referidos banquetes, não estava motivado a comparecer ao evento; porém, mudou
de opinião ao deparar- se com um belo homem, enquanto caminhava pelo centro do vilarejo;
a conexão prometia.
Apresentaram-se rapidamente, conversaram sobre
banalidades, e o sorriso de Miles, o belo homem, encantou Mark. Minutos depois, pareciam velhos amigos. Foi
então que Mark convenceu Miles a acompanhá-lo ao jantar daquela noite.
Ambientação luxuosa, todos à mesa, entre vinhos
raríssimos, tilintar de cristais e talheres de prata, conversas e risos.
No decorrer do requintado jantar, após o
prato principal, um dos convidados levanta-se da mesa, sobe as escadas que
levam ao segundo andar e tranca-se no quarto de hóspedes. É Miles.
Ao longo dos dias, semanas, meses, ele se
recusa a abrir a porta, porta esta que os proprietários não querem arrombar,
porque se trata de uma preciosidade original da casa, desde o século XVIII. Há que se considerar também que a fortuna do
casal de proprietários se encontra diminuída; antes desse episódio, cogitavam
vender a casa.
A vida dos moradores tornou-se um inferno, com
aquele estranho silencioso vivendo em sua casa. Em poucos dias a notícia se espalhou, e a casa
passou a ser a maior atração turística da vizinhança. Começa a busca pela
identidade de Miles, o invasor, pessoa que todos os presentes ao jantar diziam não
conhecer.
Esta é a
trama criada por Ali Smith.
III
Como leitora, pergunto-me:
— Como
seria esse quarto de hóspede?
— O que eu
faria lá dentro o dia inteiro?
— Teria um
computar sobre a escrivaninha? Teria uma escrivaninha?
— Teria qualquer
janela, de onde eu pudesse contemplar uma árvore, a lua e as estrelas, sem ser
notada?
— Que tipo
de alimento eu receberia por baixo da porta?
Enfim, o que me levaria a atitude tão extrema?
Excelente leitura!
Livro:Suíte em quatro movimentos
Autor: Ali Smith
Editora: Companhia das letras
Continhos marginais II - O terremoto e as flores
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