Porto Velho (RO) terça-feira, 14 de maio de 2024
opsfasdfas
×
Gente de Opinião

Crônica

Agnóstico?


Agnóstico? - Gente de Opinião

Recordar é o verbo que mais mistura neurônios e sinapses com artérias e veias, como se os interligados, cérebro e coração, vibrassem juntos no instante de acionar o botão da memória, estendendo suas influências aos sentidos do corpo, fazendo tremer um músculo, uma pálpebra e, na maioria das vezes, desenrolando um tapete macio, para que uma ou várias lágrimas desfilem, rugas abaixo, entremeadas por um tímido sorriso ou por contrações faciais de choro.

         Na concepção de pseudocientistas, como eu, é o coração que manda recados ao cérebro, pressionando a vida com arritmias conexas, com as boas ou más lembranças. O pulsar forte do coração faz parecer ser dele a ação de recordar para viver ou reviver, mas a gente sabe que o cérebro é a placa mãe que comanda as inversões do olhar, forçando a volta ao passado, glorioso ou não, ao menos para apontar quais caminhos não deveriam ser escolhidos, na difícil travessia da existência.

É agradável recordar bons momentos, relembrar velhos mestres, boas amizades. Histórias da adolescência são as mais instigantes, pois que inseridas no período mágico do ginásio, quando as risadas eram mais francas, as amizades mais sinceras, as palavras mais verdadeiras, os folguedos mais animados e as travessuras!? Inesquecíveis!!! Muito se perdeu no percurso, daí porque é importante registrar o que ainda está no córtex cerebral, ratificando parte da história da minha vida.

Passei cinco anos no Ginásio Marista Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Senhor do Bonfim-BA, contando com o curso de admissão ao ginásio, entrei com dez anos. Vivi histórias incríveis, conheci professores inesquecíveis, o mais marcante deles era português, mas formou-se em matemática na França, chamado pelos colegas de irmão Oliveira, mas alcunhado, carinhosamente, por todos os alunos como irmão Bolinha, devido ao avantajado do corpo e da cabeça redonda, quase careca. Branco avermelhado de sol, devia ter 1,80 m de altura por 1,00 m de largura de tão gordo que era. Um homem de bem com a vida, não lembro um único dia em que o vi de mau humor. O apelido não o desgostou, acabou entranhado no corpo e na mente, acredito que ele mesmo se reconhecia no espelho mais como Bolinha do que como Oliveira. 

Irmão Bolinha era o responsável pelo pomar, granja, horta, pocilga, colmeia, algumas cabeças de gado leiteiro e pela manutenção da quadra e dos dois campos de futebol, ambos gramados, sendo um oficial e outro menor para os alunos mais jovens. Para tanto, comandava alguns serviçais e alunos internos.

Excelente professor, considerado um gênio da matemática, mas o que mais ele gostava de fazer era inventar máquinas, modificar motores para irrigação, consertar os veículos da instituição. A máquina para trançar arame para as cercas da granja e da pocilga, ele a inventou num piscar de olhos.

Considerado pelo diretor como a alegria da garotada, era o responsável pelos apetrechos dos esportes: bolas, redes, raquetes, tudo referente a esportes ou a autorização para frequentar o pomar, era ele que dava, não sem antes limitar a quantidade de garotos e recomendar cuidado ao subir em árvores, além de pedir para que conservassem a farda sempre limpa, tarefa das mais difíceis – calça curta ou longa, com suspensórios ou cinto, confeccionada em brim cáqui e camisa branca de tricoline com o escudo do ginásio bordado no bolso, além de sapatos e meias pretos.

Não me lembro da quantidade de missas que assisti, nem do volume de hóstias consumidas, sei que davam pra erguer uma ponte entre o céu e a terra, infelizmente o místico/metafórico trigo não forneceu uma liga forte, a ponte caiu quando ingressei na universidade e tive acesso às discussões dos Concílios de Nicéia, às ideias de Bertrand Russel, Marx, Nietsche e tantos outros, virei agnóstico.

Ainda havia, no ginásio, a banda de músicas, a fanfarra, o coral, as feiras culturais e de trabalhos manuais, as demonstrações de diálogos em francês, latim e grego, a mexer com o emocional dos alunos, mas nada foi mais forte, em se tratando de emoção, do que o dia em que o irmão Bolinha teve um infarto fulminante, caiu entre as árvores e os animais, dos quais tratava com tanto gosto e carinho. Foi uma espécie de golpe baixo da divindade, afinal era ele quem melhor cuidava das crianças, a verdadeira matéria prima de Marcellino Champagnat, padre francês que fundou a congregação dos Irmãos Maristas: “Que haja entre vocês um só coração e um só espírito!”

Difícil encontrar um aluno que não estivesse com o semblante triste, era como se estivéssemos perdendo um membro da família, um paizão que nos recebia sempre com um sorriso nos lábios, um homem santo que pronunciava a palavra “não” e a garotada entendia, como se fosse um “sim”.

Ninguém o contestava, era dele a solução de toda e qualquer equação, principalmente as do relacionamento humano, como se vocábulos e números estivessem no mesmo patamar. Foi dele a última palavra, evaporada das flores que circulavam a sua face tranquila, no silêncio do ataúde, cujo significados místico e mítico penetraram e permanecem até hoje, no interior de cada um dos seus pupilos.

Devo ao irmão Bolinha a expressão pela qual os amigos e confrades, hoje, me caracterizam parte da existência: - William é o agnóstico mais cristão que conheço!!!  Nem tanto! o amai-vos uns aos outros, como eu vos amei continua infernizando minha razão, deixando a certeza de que guerras, especialmente as de fundo religioso, atitudes racistas, distâncias sociais, egocentrismo, ódio, fome e tantas outras atividades castradoras de ideias, vontades, opiniões, são partes inerentes do humano! Jamais os homens assimilarão, com o coração, o amor ao próximo ou a gênese divina, salvo raríssimas exceções. Viemos do inexpressivo pó, evoluímos, mas a ele retornaremos, insignificantes, até o dia em que a IA assumir o comando, aí será uma nova história, o fim do místico, a vitória da matéria.  

Gente de OpiniãoTerça-feira, 14 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Bigodes de gato

Bigodes de gato

Em " Falas Sem Fio", Agostinho de Campos. Inclui belo conselho, que os países, ou melhor – os Ministros da Guerra, deviam ponderar, antes de invadir

Você pensa ou pensa que pensa?

Você pensa ou pensa que pensa?

Durante longos anos ouvi diariamente: comentários e pareceres de amigos e conhecidos e, frequentemente escuto na cafetaria, onde todas as tardes tom

A janela da sorte

A janela da sorte

Das expressões nascidas no mundo da abstração, a janela da sorte é a que produz vistas invertidas em maior número, como se os humanos as observassem

As histórias que o padre conta

As histórias que o padre conta

“Até a metade vai parecer que irá dar errado, mas depois dá certo!” Assim que terminou de pronunciar essas palavras, Jonas Abib, o padre, contou mai

Gente de Opinião Terça-feira, 14 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)