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Gente de Opinião

Entrevista

Para jornalista, jovens e velhos vivem conflito latente no Xingu


Pedro Biondi
Agência Brasil

Brasília - O jornalista Washington Novaes destaca a circulação de dinheiro nas comunidades como o grande fator de perturbação no cotidiano do Parque Indígena do Xingu e diz que existe um conflito enunciado, ainda sem desfecho, entre as novas e as antigas gerações.

Novaes retratou o Xingu numa série de 11 documentários, gravada em 1984. Voltou à região em 2005 para documentar as mudanças nos grupos de cinco povos que havia visitado – Kuikuro, Mentuktire, Panará (antes conhecidos como Kren-Akrore), Waurá e Yawalapiti. No último fim de semana, os Kuikuro da Aldeia Ipatse e fizeram uma festa para, entre outros motivos, celebrar o lançamento de seu novo vídeo, com estréia na TV marcada para domingo (29).

Em entrevista à Agência Brasil, o jornalista aponta as razões pelas quais diz que os índios mudaram sua maneira de encarar o mundo. Confira o primeiro trecho da entrevista. E leia também, em seguida, a segunda e terceira parte.

Agência Brasil: O que mudou no Xingu nessas duas décadas?
Washington Novaes: Eles ainda têm aquele tempo que escorre mais devagar, mas com muitas transformações. Praticamente todas as casas, em várias aldeias, têm antena parabólica, então, quando têm combustível para o gerador, eles vêem Jornal Nacional, novela, jogos de futebol... Os jovens gostam muito de dançar forró, jogar futebol. Agora, talvez a transformação mais funda seja que antigamente não havia dinheiro nas aldeias, não tinha monetarização na cultura. E, a partir desse desejo de ter as nossas tecnologias, de ter televisão, de ter DVD, de ter gravador, de ter câmara de filmagem, trator, barco com motor, foi preciso que passassem a produzir dinheiro. Seja pelas associações de cada aldeia fazendo apresentações de suas danças e cantos fora, seja recebendo de direitos de imagem em filmagens... Também há, em várias aldeias, muitos velhos recebendo aposentadoria. E um salário mínimo é uma renda grande nesses lugares.

Outras pessoas tentam com a produção de artesanato. Os velhos dizem que os jovens não querem mais viver do modo tradicional, querem comprar tudo. Querem ter roupa, tênis, óculos escuros. E aí querem passar o tempo inteiro fazendo artesanato, e não vão se dedicar às atividades tradicionais, como cultivar as roças para produzir comida. Outro ângulo, muito mais complicado, é que os jovens não querem aprender os cantos, as danças, que estão todos relacionados ao mundo dos espíritos.

ABr: A presença dos espíritos era uma das origens dessa imagem que o senhor usou, "terra mágica", não?
Novaes: Sim. No mundo dos índios a questão do espiritual é decisiva, esse lado é profundamente ligado ao cotidiano, porque tudo tem um espírito que é dono. Se o culto aos espíritos não acontece a vida social começa a perder sentido. Além disso, os jovens não querem ser pajés, que é um caminho cheio de sacrifícios e de perigos, um longo processo. Os Waurá, que em 1984 tinham 13 pajés, hoje têm três; os Kuikuro tinham mais de dez e hoje têm cinco. Os Yaualapiti só têm Sapaim, que está com mais de 70 anos. Já há discussão entre os Waurá sobre um curso para isso. Mas no caminho tradicional o pajé não escolhe, é escolhido. Pode ser por meio de uma picada de cobra, de um rodamoinho que entra na casa, ou de uma doença, ou nascer enrolado no cordão umbilical.

ABr: Antes da projeção na Aldeia Ipatse, o senhor disse que os índios alteraram para sempre sua maneira de ver o mundo. Como foi isso?
Novaes: A nossa cultura, em geral, enxerga-os de uma forma muito limitada. E não olha as culturas indígenas pelo que elas têm de mais importante. Por exemplo: a organização social e política. Entre os índios que vivem ainda na força de sua tradição, o chefe não manda em ninguém. Ele é a pessoa que conhece a história, conhece a cultura, as tradições, e transmite isso para seu povo em cada situação. É o grande mediador de conflitos, o que fala melhor, e, por isso tudo, o que mais sofre. E não dá ordens porque não há delegação de poder, e sem delegação de poder não pode haver repressão, e sem isso não pode haver repressão de um grupo por outro grupo, ou de um indivíduo por outro. Isso aponta na direção das utopias, uma sociedade que não precisa ter poder. E proporciona uma vivência para nós quase inimagináveis: alguém nascer e morrer sem receber uma ordem sequer.

ABr: Se formos comparar...
Novaes: Nossa cultura tenta promover a democracia da maioria e raramente consegue, enquanto eles têm no dia-a-dia a democracia do consenso. O índio, na força de sua cultura, é um ser absolutamente auto-suficiente. Sabe fazer tudo de que precisa para viver – plantar, caçar, pescar, sabe fazer sua casa, fazer seu instrumento, fazer seus objetos de adorno, sua rede, sua esteira, sua canoa. Nasce e morre sem depender de ninguém para nada. Me impressionou ver crianças que não apanham por nada, ver o carinho para com elas, a liberdade e a alegria delas. E, por fim, a informação é aberta. O que um sabe todos podem saber. Ninguém se apropria da informação para transformar em poder. Conviver com isso, ver que é concreto, mudou minha visão: eu sei que outras coisas são possíveis. É preciso que a nossa sociedade aprenda a ver essas coisas.

ABr: E as duas outras características – a ausência de informação restrita e a autonomia? Mantêm-se?
Novaes: Eles [os xinguanos] estão no ápice de um conflito entre os mais velhos e os mais novos que é já enunciado, mas não tem ainda desfecho. Os velhos vêem com enorme temor o que está acontecendo e sabem que a cultura não vai sobreviver se os jovens não tomarem outro caminho. Isso ainda não se traduz em mudanças práticas, por exemplo, na organização social. Os chefes são instituídos pelo caminho tradicional. Em quase todas essa culturas, são escolhidos pela hereditariedade. E isso não é questão de privilégio: um chefe precisa ser educado desde muito pequeno, precisa de convívio permanente com o pai. Quando acontece alguma perturbação nesse caminho, é complicado. Quando os Villas-Boas [indigenistas que fizeram contato com vários povos] se aproximaram dos Kuikuro, nenhum Kuikuro falava português. Eles conheciam o Nahu, de pai nahukwá e mãe kuikuro. Quando morreu o pai do Tabata e do Afukaká, que ainda eram meninos, os Villas-Boas nomearam, entre aspas, o Nahu chefe. Isso gerou conflitos quando Tabata e Afukaká foram chegando à idade adulta, porque eles eram herdeiros tradicionais. Isso seguiu até que o Nahu morreu. O filho dele, Jakalo, que é kuikuro, é cacique hoje.

ABr: E quanto à auto-suficiência?
Novaes: Logo, logo, vai começar a ter [implicações concretas]. Não se sabe até quando os velhos vão aceitar a postura dos jovens. Eles vão perdendo a autonomia e interrompem um conhecimento, uma habilidade. É o momento em que o conflito se explicita, e vamos ver em que direção ele se desdobra. Uma esperança deles é que a documentação em vídeo leve os jovens a querer saber dos mitos, das lendas, dos formatos tradicionais.

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