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Simon

Os três morcegos da minha infância


À mesa do jantar, meu pai declarou à família que nos próximos dias iria  com os amigos Antonio Pretinho, Zeca e Osvaldo passar uma semana na Bolívia. Iria subir no Igarapé Grã-Cruz até encontrar o castanhal que ficava na propriedade de um amigo seu, boliviano, conhecido como Dom Charque. Um sujeito de aparência atarrachada, cabelo liso, boca torta e esverdeada. Tinha o costume de mascar hojas de coca e  nos fazia pedir a bênção todas as vezes que chegava em nossa casa. Ao menor sinal de sua presença no terreiro, corríamos mato a dentro, pois a criatura era a cópia perfeita do curupira, figura tantas vezes descritas nas estórias que  mamãe contava antes de nos cobrir com seu olhar maternal e as estrelas cuspirem pelo telhado sua luz benfazeja. Nesse tempo,  além dessas criaturas habitantes da floresta que vigiavam nosso sono, havia um medo assustador das rezas que antecediam esse momento, até hoje não vi nada que me infundisse mais medo do que a possibilidade de desacatar Deus. O inferno era ali na esquina e as labaredas demoníacas queimaram várias vezes minhas pestanas insones.

Quando papai se ausentava, parecia que esses medos se multiplicavam, e naquela noite não consegui despregar os olhos das estrelas. Somente com o alvorecer do dia, saudado pelo canto dos galos, é que consegui esquecer a notícia e dormir até ouvir minha mãe chamando para o trabalho. A viagem não demorou acontecer, meu pai preparou seus apetrechos, facão, espingarda, rede de dormir, tarrafa para garantir com mais rapidez o seu bocado, selou seu cavalo e na companhia dos seus amigos, desceu pelo caminho  seguindo para Vila Murtinho. Era nove horas da manhã, o tempo estava enfumaçado, ficamos eu, meus irmãos e minha mãe no terreiro, olhando em silêncio o comboio que se distanciava, mas não tínhamos tempo para tristezas, havia os afazeres da casa, do curral e da roça para tomarmos conta. Mamãe com seu olhar apressado foi nos dizendo a parte que caberia a cada um nessa lida diária e necessária.  Coube a  mim  levar as vacas para pastarem no capim que ficava entre a cerca de arame farpado e a estrada. Não era uma tarefa difícil, havia muitas árvores, principalmente goiabeiras e suas imensas frutas amareladas cheias de bicho, que comíamos, retirando-os  um a um. Gostava de ficar contando os carros que passavam na estrada, eram raros, mas quando apareciam, ficávamos encantados com a cor, tamanho e  modelo, para nós todos esses veículos só tinha um nome, carro. Eu ficava imaginando a viagem que papai estava fazendo, talvez não distasse mais que quinze quilômetros de nossa casa, mas para nós era como se papai estivesse embarcado nas caravelas de Colombo e viajasse da Espanha até à América, pois nosso mundo era do tamanho do quintal da nossa casa e a maior distância que percorríamos nos levava a menos de um quilômetro, onde localizava-se a escola.

Era nossa maior diversão, no caminho entrávamos nos bueiros que ficavam sob a estrada, armados com galhos verdes, para matar os pobres morcegos que procuravam esses abrigos com medo da luz do sol, chegávamos à escola com a roupa suja e cheirando a essência de morcego, um aroma não lá muito agradável. Não importava, na volta para casa, uma segunda batalha seria desferida contra as incomuns criaturas voadoras. Lembro-me de que quando mamãe apagava as lamparinas da casa, e nos acomodávamos cada um em seu catre, essas  criaturas saíam de suas tocas, tantas vezes invadidas, e ficavam voando por sobre nossa cama a noite toda. Eu sentia o bafo quente do vento que suas asas provocavam ao voar, cobríamos da cabeça aos pés, no frio ou no calor, com medo de seus dentes afiados e de seu ruído estridente que se assemelhava muito aos ruídos provocados pelo rádio de meu pai. Era a vingança do morcego, até hoje durmo coberto dessa maneira, alguns medos de minha infância me perseguem, o curupira já não me assusta, mas as línguas de fogo me fizeram  continuar a sentir medo de Deus.

Meu pai voltou uma semana depois, com aparência cansada e as vestes sujas, o cavalo transportava no lombo duas barricas de castanha, carne de caça e uns peixes de couro salgados. Ao avistarmos papai lá na estrada, voltamos ao mesmo local de sua partida, o terreiro agora tinha outra vibração, minha mãe não apresentava mais um olhar apressado, estava exultante enxugando várias vezes as mãos em seu avental. Os cachorros “rompe ferro e ferralho”, em posição de sentinela saudavam altaneiramente a volta do dono, meus irmãos ficavam pensando quais presentes papai estaria trazendo para cada um de nós. Essa ingenuidade não os deixava ver que papai e mamãe não tinham tempo para presentes ou coisa parecida, ocupados diuturnamente na tarefa de alimentar e vestir oito bocas. Eu não esperava nenhum regalo de meu pai.  A certeza que ele dormiria em casa aquela noite me deixava extremamente contente e aliviado. A sua presença em casa me ajudava a suportar melhor o bafo frio dos morcegos e a crueldade assustadora das labaredas de fogo.

Autor: Simon O. dos Santos – Mestre em Ciências da Linguagem e membro da Academia Guajaramirense de Letras – AGL – Emails – [email protected]e [email protected]
 

“Sou um Amazônida, Filho da Ferrovia”

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