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O INTERMINÁVEL RUÍDO AINDA ASSOMBRA A TRÁGICA E MÍTICA FERROVIA


 

A calmaria do pequeno povoado às margens da nascente do rio Madeira contrastava com o ruído incessante dos batelões navegando nas águas do Beni com destino à Cachuela Esperanza, centro nervoso do imenso seringal Grã-Cruz, pertencente ao boliviano Dom Perez de Velasco.   O Grã-Cruz estendia-se pela extensa planície beniana, rica província produtora de charque, abarcava boa parte das terras gomíferas do Departamento de Pando e espraiava-se pelos ricos seringais pertencentes ao Estado do Mato Grosso, em solo brasileiro.

Dom Perez de Velasco, colla, nascido na região de chuquisaca, pertencia a uma linhagem de sagazes comerciantes, plantadores de batata nas encostas sinuosas do relevo andino. Ainda criança, assumiu na pequena empresa familiar,  o papel de contador, sendo o responsável pelo crescimento dos negócios e pela distribuição da produção em outras regiões da Bolívia, alcançando, poucos anos depois, regiões remotas do sul da Argentina e da cordilheira chilena.

Jovem e visionário, Perez de Velasco, desceu a cordilheira e empreendeu viagem rumo à planície beniana, com destino à Guayaramerin, onde o burburinho da produção gomífera fazia surgir gente de várias partes do mundo, em busca de trabalho e de riqueza fácil. A cidade era a mais próspera de toda a região dos vales do Mamoré e Madeira, sendo concorrente em número de habitantes com as cidades de Manaus e Belém.

Perez de Velasco chegou à Guayaramerin em uma tarde chuvosa, após meses de travessia pelas terras encharcadas das margens direita do Beni.   Figura simples, sem luxo ou ostentação, gastava o estritamente necessário e era também econômico nas palavras e nos gestos.  Escolhera uma hospedaria um pouco afastada do centro da cidade, de onde observava meticulosamente o vai e vem desenfreado das montarias carregadas com cachos de banana, charque e uns objetos roliços, aparentando serem colméias de maribondos.

No dia posterior à sua chegada, Perez de Velasco, dirigiu-se ao  embarcadouro, localizado na parte mais agitada da cidade, às  margens do Mamoré, onde aglomeravam-se  centenas de comerciantes, vendedores, seringueiros, coronéis, malandros, prostitutas e desocupados, todos impregnados pela ganância do cheiro forte do látex defumado nos grotões destas longínquas terras amazônicas.  Encostou-se em um alpendre de uma das várias lojas do local, e ficou observando os  coronéis sentados logo abaixo, nas escadarias do embarcadouro, fumando charuto e tomando uma bebida forte e amarelada fabricada na região caribenha, ao lado de várias mademoiselles, embonecadas, impregnadas de perfume e com longos e reluzentes colares a lhes enfeitar o peito.

Em particular, uma cena deixou o jovem colla, muito intrigado.Um dos coronéis, dono de um bigode farto, dentes amarelados e voz roufenha, sentado em uma confortável poltrona, abanado pela mais bonita das mulheres do local, soltava longas baforadas de um charuto enrolado em uma sedosa nota de dólar americano. “Loco, deve ser muy loco este hombre” -  pensou se aproximando do grupo, em busca de informações sobre a Hevea brasiliensis, que deixava os ricos homens  a ponto de queimar dinheiro.

Poucos dias depois, Peres de Velasco já era proprietário de uma extensa área de seringal nas proximidades de Cachuela Esperanza, onde mandara construir um imenso barracão, de onde saíam para as suas Colocações, toda sorte de mantimentos que pudessem deixar os miseráveis seringueiros, cada vez mais dependentes de seus caprichos e da sua sanha irreprimível de ganhar dinheiro.

A indiscutível verve empreendedora de Perez de Velasco, direcionou seu faro para ganhar dinheiro  investindo também nas navegações pelos rios da região, adquiriu extensas área de campos na planície beniana onde criava milhares de cabeças de gado, transformadas em charque, chegava aos mercados de Manaus, Belém  e regiões longínquas  dos países andinos. 

Com menos de quarenta anos de idade, era o homem mais rico de todo este enclave amazônico. Seus seringais vomitavam diariamente toneladas de borracha defumada nos embarcadouros de Guayaramerín e mais tarde em Vila Murtinho, tornando-se este local, o mais importante entreposto comercial, entre a cidade boliviana e Manaus.

A geografia foi fator decisivo para o sucesso dessa empreitada, localizada na junção de três rios, Mamoré, Beni e Madeira, e há poucos quilômetros de Cachuela Esperanza, Vila Murtinho reunia condições ideais para tornar-se o centro aglutinador de toda a riqueza produzida pelo conglomerado empresarial de Perez de Velasco.

No auge do ciclo da borracha, Vila Murtinho era habitada por aproximadamente oitocentas famílias, todas vivendo em torno da economia gomífera e da mão pesada e insaciável de Perez de Velasco. Durante as  raras visitas ao povoado, o rico e empreendedor seringalista, fazia meticulosas vistorias em  seus barracões  onde eram armazenadas as pélas, enquanto aguardavam o embarque para os mercados compradores de borracha, em Manaus, Belém e América do Norte.

De sua residência, em Cachuela Esperanza, Dom Perez de Velasco  gerenciava todo o seu império, viajava pouco, raramente voltava à região de Chuquisaca para visitar a família  e duas vezes por ano viajava às cidades de Manaus e Belém, para renegociar contratos com os barões da borracha e assim,  garantir a continuidade dos lucros de seus empreendimentos.  Perez de Velasco comemorou com grande entusiasmo a notícia que cortou os grotões de seus seringais sobre a construção de uma ferrovia no trecho encachoeirado do Madeira, ligando Porto Velho à Cachoeira Pequena, às margens do Mamoré.

O perspicaz seringalista, articulou planos para expandir ainda mais seus negócios, pensando na elevada capacidade de carga e segurança da ferrovia que rasgaria pântanos e florestas, fazendo com que sua produção de látex e charque chegasse com mais rapidez aos centros consumidores, mundo afora.

Perez de Velasco não viveu o suficiente para ver intermináveis vagões, como se fossem uma imensa anaconda serpenteando vagarosamente as curvas da ferrovia, transportando sua riqueza até Porto Velho, nem chegou a ouvir o interminável apito do trem descortinando as densas folhagens das gigantescas árvores às margens da ferrovia, fazendo os caboclos nus embrenharem-se  em debandada rumo à serra dos Parecis.

Com sua morte, o esfacelamento do conglomerado que mantinha a mão de ferro foi inevitável. Não se sabe se Perez de Velasco tinha herdeiros  reconhecidos ao parentes que desceram dos Andes para ajudá-lo na administração de seu império. Morreu quando sua luxuosa embarcação foi tragada por um imenso redemoinho formado no majestoso encontro das águas do Mamoré e Beni, em frente ao povoado de Vila Murtinho, onde nasce o portentoso Rio Madeira. Acredita-se que Perez de Velasco tenha sido devorado pelos viscosos e esfomeados candirus, ou descansa sossegadamente no  ventre de uma gigantesca piraíba,  escutando o interminável e inconfundível ruído  do trem na trágica e mítica ferrovia.

Autor: Simon O. dos Santos – Mestre em Ciências da Linguagem e membro da Academia Guajaramirense de Letras –AGL.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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