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Lúcio Flávio Pinto

Amazônida, produto da consciência


Amazônida, produto da consciência - Gente de Opinião

O Dicionário Houaiss, o mais erudito da língua portuguesa, abriga 15 verbetes relativos à Amazônia, de Amazon (o primeiro) a amazonólogo (o último). Nenhum outro dicionário se lhe equipara nesse quesito. É dos raros que registra o vocábulo amazônida, mas relacionando-o à sua origem etimológica e à lenda das amazonas, as imaginárias mulheres guerreiras que inspiraram a designação dada pelos primeiros colonizadores europeus à maior região homogênea do Brasil.

Quem for ao dicionário online de português, na internet, vai ficar sabendo que amazônida é a pessoa “que nasceu ou vive no Amazonas, estado que se localiza no Norte do Brasil, onde também está localizada grande parte da Floresta Amazônica; amazonense. adjetivo Relativo ou próprio do Amazonas. [Por Extensão] Particular ou característico da Amazônia (floresta). Etimologia (origem da palavra amazônida). Do nome próprio Amazônia + ida”. E que amazônida é sinônimo de amazonense.

Foi com outro significado que usei a expressão, num cenário internacional. Foi em 1990, durante a sessão que o Tribunal Permanente dos Povos (ex-Tribunal Bertrand Russell) dedicou à Amazônia, em Paris. Ser amazônida, nessa concepção, provocou forte reação dos meus companheiros do sul do país, incomodados pela pretensão que expressei a uma condição regional específica num corpo nacional. Não um estado dado, natural, externo, mas produto de uma busca cognitiva, de uma consciência e de uma ação concreta.

A premissa é de que a Amazônia é um organismo harmônico, que funciona em circuito fechado de sol, água e floresta. A chuva cai do céu, em grande parte do tempo sob intensa luz solar, fecundando a copa das árvores (com alimento e fotossíntese) e descendo por seu extenso tronco, coberto por vegetação associada, até o solo, onde tem impacto mínimo, espalhando-se sob a sua superfície para sustentar milhares de vidas, sobretudo as microscópicas.

O rompimento desse ciclo, ainda mais quando abrupto, pela intervenção humana, sobretudo quando realizada com o emprego de alta tecnologia ou violência descontrolada, fere gravemente a continuidade desse sistema de vida e pode levar a substituição de um etos amazônico por um pathos degenerado em floresta secundária, mata aberta, savana e sertão. Fulminando a identidade da região.

Essa “identidade amazônica” é produto da natureza, enquanto informação em estado bruto, e a construção da consciência, num ponto de equilíbrio que reconhece (preservando) o que é amazônico, porque só ocorre na região, ou só nas condições em que se manifesta no meio ambiente, e o ajuste e adaptação engendrados pelo homem para encontrar seu lugar nisso que é o locus, mais do que cenário ou paisagem.

Embora não exista ninguém mais amazônico do que alguém que tenha nascido ou more na região, essa não é condição suficiente para que se perceba a especificidade regional. O conceito de amazônida envolve a individualidade da região, para cuja caracterização, existência e persistência a sua vinculação à água, a luz e a floresta, como um organismo integrado, é indispensável.

Esse entendimento não pode ignorar que a Amazônia já não é mais uma região isolada, protegida, intocada. Pelo contrário: o desmatamento é o fato mais intenso, grave e ameaçador das últimas seis décadas, desde que a penetração na região foi promovida através da abertura de estradas no meio da floresta, a partir do final dos anos de 1960.

A área alterada de várias maneiras pelo homem desde então pulou de menos de 1% da superfície da Amazônia Legal, que ocupa dois terços do território brasileiro, para quase 30%. Nunca o ser humano destruiu tanta floresta quanto na região, nesse período, em toda a sua história.

Boa parte dessas transformações físicas é irremediável. Não por falta de tecnologia para promovê-la. O que falta é vontade política e uma visão mercantil que considera inviável economicamente o custo da regeneração da floresta nativa. Sem deixar de pressionar o governo para fomentar projetos de recuperação da natureza, é preciso conter o avanço bárbaro das frentes econômicas, que praticamente são sinônimos de desmatamento e destruição.

Meras palavras de ordem em torno da bandeira do desmatamento zero e utopias comprometidas na origem não conseguirão destituir as frentes pioneiras da sua lógica antiamazônica. Adesões singulares nada representam diante da lógica de avanço no espaço amazônico, determinado de fora para dentro – tanto de fora da região quanto do próprio país, sobretudo do estrangeiro.

A internacionalização da Amazônia é um fato, sem precisar se tornar uma fatalidade, por seus efeitos negativos. Desde o período colonial, a região esteve mais ligada ao exterior do que ao Brasil, ao qual foi integrada tardiamente, a última das regiões incorporadas à nação, sem ser por ela compreendida.

A inserção da Amazônia no circuito internacional se tornou definitiva com o primeiro choque do petróleo, em 1973. Para ela foram, deslocados os processos produtivos com maior absorção de energia, como a mineração, a metalurgia e a siderurgia primária. O movimento do capital cristalizou uma relação colonial da região com os mercados consumidores internacionais, lhe impondo relação de troca desfavorável.

Talvez só a solidariedade internacional, através do circuito da ciência, seja capaz de evitar esse destino manifesto subordinado e de sujeição, que nivelará a Amazônia à África e à Ásia, vítimas de processo semelhante no século passado.

Investimentos em ciência e educação podem dar à Amazônia a condição de dialogar com os grandes centros do saber no mundo (e no próprio Brasil), atraindo pessoas, entidades e até governos para a região, com o propósito de conhecer efetivamente a Amazônia e ajudá-la, a partir desse saber íntimo e operativo, a buscar um novo rumo.

Essa busca pode significar um risco para a soberania, mas pode ser também uma maneira de equilibrar a situação na região, onde muitos desses personagens, agindo dentro das normas legais, nem por isso deixam de representar um elemento de agressão e de ameaça para a mesma soberania, se não em termos formais, ao menos na prática.

É preciso difundir as informações sobre as questões mais importantes que estão em curso. Elas circulam em ambientes privilegiados. Socializadas, talvez ofereçam a rara oportunidade de uma região colonial, como a Amazônia, finalmente poder ser contemporânea da sua história e não apenas espectadora dos atos dos seus atores decisivos, nenhum dos quais é verdadeiramente amazônida.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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