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O TROLE MULTICULTURAL


O TROLE MULTICULTURAL - Gente de Opinião
Por William Haverly Martins

 

 O limite territorial, a fronteira será o último obstáculo ao pluriculturalismo, o mundo se apequena, não perguntem como, mas os escritos de Bahá’u’lláh garantiram em profecia: a terra é um só país e os seres humanos seus cidadãos. Certo tempo, no passado recente, um grupo de homens mundiais viveu a babel multicultural, como o prenúncio de um futuro distante, a língua não foi obstáculo.

O trole fora preparado, por dias, para uma viagem comemorativa: o centenário! Um Titã e um Granadino se prepararam para a grande aventura de suas vidas: o tempo não usaria relógio para marcar o compasso do sol, o espaço não careceria de velocímetro para sentir a rapidez do deslocamento, a direção não seria marcada por uma bússola mecânica, nem eletrônica. Intuição, visão, o canto do japiim, o reclamo das águas encachoeiradas, o piado do bacurau, o sexto sentido, a lombra, marcariam o tempo, a velocidade e a direção dos caminhos e descaminhos, usando um combustível pessoal fabricado no cadinho de um pajé karipuna.  Os trilhos da EFMM, sem limites nem fronteiras, tremerão, a cada passagem do trole, por este mundão da imaginação.

Pra cima, pra baixo – pra cima, pra baixo. O trole se deslocava no compasso da força desumana. Espanhóis acenavam na passagem, gritando olé, o Titã respondia com um sorriso platônico e o Granadino dizia thank you. Aqui e acolá renovavam a lombra. Cruzaram com Palheta que subia o Madeirão rumo ao Guaporé, vinha de Belém carregado de mudas de café que ele contrabandeara de Caiena e estava levando para o Rio e São Paulo. Reclamar do contrabando de sementes de seringueira era politicamente incorreto.

O Granadino enxugou a lágrima familiar e olhou o horizonte na direção do Caribe: por mais que enxugasse, ela se renovava, provinha da lembrança, assim teimosa porque o trole cruzara os limites do cemitério da candelária. Ainda havia resquícios de sepulturas: o judeu marroquino Benchimol, o morador mais ilustre, cem anos e o nome ainda estava lá, o maculo o subtraiu sem deixar mácula, antes de Hitler, somando-o aos europeus dizimados, nada que lembrasse os tempos áureos do congestionamento de defuntos multiculturais da EFMM. Os nordestinos, cova rasa, eram enterrados ao longo dos trilhos, já os caripunas, à beira dos paludes, nas margens do Madeira embravecido. Os americanos, capitalistas da epopeia, eram enterrados mais fundo, dessa forma, diziam os coveiros cubanos, não se corria o risco deles aflorarem.

Pra cima, pra baixo – pra cima, pra baixo. As rodas de ferro entoavam, nos trilhos, o canto de dor dos soldados da borracha, os nordestinos acorriam pra beira, lembrando as de madeira puxadas por bois: boi bumbá, boi bumbá, gritavam eufóricos. Cazumbá veio vos salvar, uma voz cavernosa estremeceu as ondas sonoras. O Titã não entendeu a saudação folclórica, tomou como gozação chifruda, se irritou e mandou todos à alfa, beta e gama, manobrando rápido o trole e se deslocando daquele ambiente febril.

O branco subia o negro descia, o branco subia o negro descia, o trole continuava a marcha sem entender o preconceito, entendia de estrada de ferro e da importância dos negros caribenhos na conclusão da empreitada. Eram mais fortes, resistiam às endemias e se contentavam com pouco: batuque, vodu, protestantismo, Santa Bárbara, miscigenação e cotas raciais. Carrega o trem, Mr. Maloney, puxa o trem, Mr. Shockness, abastece o trem Mr. Johnson, ei, seu Silas, esta máquina sai ou não sai?

- Corre, compadre Granadino, lá vem o trem fantasma, ele vai passar por riba de nós!

- Que trem que nada, compadre Titã, isto é alucinação do Bubu! O trem foi pisoteado pela insanidade dos soldados da Intentona de 64, no ano de 1972.

Pra cima, pra baixo – pra cima, pra baixo. O Granadino olhou as margens, pensou ter visto uns galhos se mexendo, é nada não, confortou o Titã, respondendo aos olhos arregalados e aos ouvidos atentos do companheiro de viagem: - sobrou muito pouco destes guerreiros caripunas, galho mexendo, hoje, é macaco prego. Podia-se matar índio, não se pode matar macaco. É a lei! Mas que lei é esta que autoriza asusina a acabar com a morada da bicharada, matando de tabela?

Pra cima, pra baixo – pra cima, pra baixo. Arbusto de chacrona com cipó de mariri, vasilhame de 5 litros acomodava o chá que não era inglês, presente do pajé, na hora da partida. Aliás, os ingleses dançaram no baile dos anofelinos: a Public Works virou Public Runs. Dá mais um gole, compadre. O titan da railway faliu, não esperava a puxada de tapete do inglês Henry Wickham, sacanagem de contrabandista que destruiu os galhos e o tronco da EFMM, deixando, em nosotros, apenas as raízes multiculturais.

O sobe e desce das engrenagens foram sendo aceleradas ao extremo das energias, ao aproximar-se o cruzamento da EFMM com a BR 364: as cinquenta nacionalidades fantasmas que embarcaram no trole fizeram festa na euforia do encontro com os que vieram dos quatro cantos do Brasil para formar este estado, apagando a identidade cultural do rondoniense, mas ratificando o novo conceito de política identitária: individual, marcada pelo amor a este rincão, nativo ou adotado.

Em 30 de abril o trole chegou a Guajará-Mirim, o Titã reviveu os momentos do cumprimento do tratado de Petrópolis, confabulou com os descendentes. O Granadino atravessou o Mamoré, em busca de paella e paceña, dançou com os quíchuas. Um letreiro chamou-lhe a atenção para uma loja que vendia produtos japoneses, coreanos, árabes, americanos, chineses, brasileiros, europeus, sentiu-se passageiro do mundo, mas buscou na memória os costumes da sua terra. Pensou em escolher nova identidade cultural, havia tanta mistura na cabeça que ele estava confuso, como se de repente estivesse em busca do que se perdera nos caminhos e descaminhos da vida: a identidade cultural lhe pareceu um bem individual, no mundo globalizado. Impossível categorizar a subjetividade: Cultura é a passagem de um homem pelo mundo, ele mesmo, sua sombra, sem rastro, sem eco.

A viagem de retorno demorará três meses, fora programada para chegar a Porto Velho em 1º de agosto, queriam chegar a tempo das comemorações pelo centenário da EFMM, a grande virada cultural, propagandeada pela imprensa, dizia da chegada de representantes do mundo, simbolizando os que morreram, os que trabalharam na EFMM. Também virão rondonienses dos outros cinquenta municípios que não participaram desta epopeia, filhos dos rastros de Rondon e da outra grande construção: a BR 29/364.

Pra cima, pra baixo, pra cima pra baixo. Miscigena, miscigena, pra cima, pra baixo, pros lados, de cabeça pra baixo. O espaço do trole foi pequeno pra tanta história miscigenada.

O trole de braços cansados venceu os limites territoriais, abraçando o mundo, como se o transporte de mais passageiros para a zorra do pluriculturalismo, a profecia caminhará de mãos dadas com a comemoração do centenário: na estação de Porto Velho o trole e seus passageiros serão recepcionados por Abraão, Krishna, Zoroastro, Moisés, Buda, Jesus, Maomé e Bahá’u’lláh, diversidade que ensejou o brotar de uma identidade egocultural.

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Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e vice-presidente da Acler – Academia de Letras de Rondônia, onde ocupa a cadeira 31.              

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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