Porto Velho (RO) quinta-feira, 9 de maio de 2024
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Gente de Opinião

Abnael Machado

O CUPIM


 
 
As tropas imperiais japonesas de vitória em vitória estendiam o seu domínio sobre o continente asiático. Os seringais da Malásia abastecedores de borracha às indústrias bélicas das Nações Unidas Inglaterra, França, Estados Unidos e outras, na segunda Guerra Mundial, também haviam sido ocupados pelas forças nipônicas colocando em situação periclitante os exércitos aliados.

A solução encontrada foi buscar a borracha da Amazônia, mas para por em prática tal alternativa, se fazia necessário a reativação dos seringais abandonados ou semi-abandonados, em decorrência da desvalorização deste produto ocasionado pela concorrência inglesa no mercado mundial com a produção oriunda de suas colônias na Malásia, cujos seringais de cultura, originaram-se das sementes de seringueiras roubadas principalmente nas florestas do Acre, por súditos ingleses e contrabandeando para a Inglaterra.

Para as atividades de produção de borracha nos seringuais amazônicos em quantidade que suprisse a crescente necessidade dessa matéria prima nos parques industriais da Europa e dos Estados Unidos, este último, firmou com o Brasil o Acordo de Washington, pelo que se comprometiam os Estados Unidos a fornecer os equipamentos para os seringais, os meios de transportes, integralizar 42% do capital de um banco de crédito a ser criado, o Banco da Borracha e combater a malária, sendo criado o SESP. O Brasil ativar os seringais, recrutar os seringueiros (soldados da borracha) e integralizar 58% do capital do citado Banco.

Foi em decorrência desse acordo, que aportou no mais longínguo seringal do rio Abunã, dois jovens tenentes John Lee e William Peter oficiais do exército norte-americano, carregados de todos utensílios necessários a produção de borracha e grande quantidade de motores de popa para serem assentados nas canoas a serem adquiridas no local e distribuídas aos seringueiros para transportarem as pelas de borracha de suas colocações1 no interior da floresta para o barracão2 na margem do rio principal. Pretendiam organizar um sistema de circulação ágil, de modo que a produção chegasse com rapidez ao porto do seringal e deste, embarcado e remetido para Manaus via Abunã Porto Velho/GE utilizando os trens da Madeira-Mamoré e os gaiolas é chatas do SNAPP e aí chegando, reembarcado nos grandes navios cargueiros com destino à New York.

Os jovens eram motivo de admiração, a notícia de terem chegado ao seringal correu célere de barraca, as mais longínquas colocações. Vinha gente de muito longe para os conhecer. Foram rebatizados e promovidos de posto, passaram a ser os capitães Joanlé e Uliapeste.

O tenente Jonh resolveu assentar o seu centro de operações em um lugar estratégico, no interior da floresta, próximo às colocações e suas estradas de seringueiras3 para de forma mais eficiente controlar a produção e prestar apoio material aos seringueiros.

O tenente William ficou no barracão, responsável pela agilização e o controle da exportação da borracha para o Estados Unidos.

O gerente do seringal escolheu a colocação do João das Onças para ser instalado o centro de operação do tenente John, por sua posição equidistante das demais colocações. Encarregou ao João de ser o seu anjo protetor, instruí-lo nos segredos da floresta e ser o responsável por sua integridade física.

Ao lado da barraca do seringueiro foi construído o depósito de material com duas divisões uma para os medicamentos contra malária, anti-ofídico, vermífugos, primeiros socorros, etc., a outra uma saleta de estar e o dormitório.

Os dois se deram muito bem, tornaram-se amigos, o americano admirava em João a resistência física, a atilada inteligência, o conhecimento, a convivência em equilíbrio com a natureza garantindo assim, a sobrevivência em um meio aparentemente tão hostil. Admirava também a sua mulher, cabocla sertaneja de corpo esbelto e formas perfeitas, com os inconfundíveis traços étnicos indígenas e europeus. A pele de uma tonalida de nem branca e nem escura, os cabelos longos de cor igual aos seus grandes e expressivos olhos castanhos, nos lábios sempre um sorriso mostrando seus dentes alvos e prefeitos. Irriquieta, de movimentos ágeis executando os afazeres domésticos e cuidando com presteza dos seus dois pequenos filhos crianças sadias e travessas. No princípio arredios, ela e as crianças, com o passar dos dias, John conquistou-lhes a confiança ficando bons amigos.

O João por sua vez, admirava o novo companheiro por sua simplicidade, apesar de ser um moço letrado, lhe ouvia com atenção e interesse, procurava aprender tudo que via ou ouvia anotando em um caderno e a noite após escutarem o noticiário pelo rádio a bateria, relia as anotações e escrevia mais coisas sobre suas observações até quase a madrugada. Abandonou a comida enlatada passando a comer a bóia que sua mulher a Maria preparava, faziam as refeições juntos os dois, a Maria e as crianças. Aos domingos pescavam, caçavam ou visitavam outras colocações. Com curiosidade e atenção ouvia as estórias nordestinas da mula-sem-cabeça, da burra de padre, do lampião, do lobisomem e dos milagres do Padinho Padre Cícero e as amazônicas do mapinguari, iara, caapora, boto, curupira, cobra grande, batedor, almas penadas, sapo canuaru, encantados, bichos do fundo, onça-pé-de-burro e outras. Aprendeu a remar conduzindo as ubás, a fazer espera, a beber pinga com limão, a pitar cigarros de palha, a comer as frutas nativas pajurá, uchí, mari-mari, tucumã, beribá, solva, jucá, ingá, piquiá, castanha, abacaba, patoá, açaí, genipapo, cajá, etc.,

Gostava das festas dançantes, das ladainhas, dos folguedos juninos com suas danças, comidas típicas, aluas, quentões e fogueiras. Em um destes, no barracão, tornou-se compadre do João, dando três voltas em torno da fogueira em sentido contrário cada um e ao se encontrarem cumprimentando-se com um aperto de mãos, pronunciando: "São Pedro disse, São João confirmou que nos houvera de ser compadre que Jesus Cristo mandou". Achava divertida a cavernada.

Um dia do mês de maio de 1945, terminou a guerra e o tenente John recebeu ordem para regressar, jamais pensou que tal ordem que sempre esperou com ansiedade, pudesse entristecê-lo tanto, estava dividido entre a pátria distante e a floresta amazônica, os seus mistérios, os seus habitantes natos e adotivas, ele ja se incluía entre os segundos.

Mas ordens são para serem cumpridas, acertou com seu cumpadre a percorrem as colocações e recolherem os motores de popa, os outros materiais de trabalho como baldes, tijelinhas, facas de seringa, espigardas e porongas5 doaria aos seringueiros. Recolhidos os motores ao depósito foi feita a relação do material estocado, ficando uma cópia com cada um. Seus pertences rádio, lanterna, rifle, rede e barraca de campanha, cantil e prato presenteou o compadre. Combinaram que quando chegasse aos Estados Unidos, mandaria instruções de como deveria proceder para lhe remeter os motores.

João, sua mulher e filhos acompanharam o tenente John ao barracão, ali encontraram os seringueiros de várias colocações que vieram se despedir dos dois americanos. Após o almoço oferecido pelo gerente, embarcaram na lancha que os levaria à Abunã. Antes John abraçou os seus compadres João e Maria, e as duas crianças, recomendando mais uma vez cuidado com o material que ficava sob sua responsabilidade. Maria chorava pela perda do bom amgio e que sabia que jamais tornaria a ver aquele gringo brabo6, que tornou-se um caboclo quase igual a eles, os seringueiros.

A lancha levando os dois marines, rio abaixo sumiu em um dos seus meandros e a vida voltou a sua rotina no seringal.

Passaram-se os meses sem nenhuma notícia do John, o seringalista mandou chamar o João Das Onças e lhe fez uma proposta: "seu João me venda os motores de popa que o gringo deixou sob sua guarda, nos faremos um ajuste de contas, você paga o que deve e ainda sai com saldo para visitar o nosso Ceará, vê a sua gente e a de dona Maria, eu sei que é esse seu propósito, se a gente fechar o negócio, lhe dou as passagens, você nem sabe como aquilo por lá está tão bonito". O João lhe disse que não podia fazer tamanho estrupício, como ele iria dá conta dos motores quando o John mandasse buscar? O patrão retrucou, seu João o homem nunca vai mandar pedir de volta o que deixou aqui nestes cafundós, os americanos são podres de ricos, não fazem questão por esta porcaria. O João pediu um prazo para pensar e tomar uma decisão. Quando consultou a Maria, esta aconselhou-o a aceitar a proposta, concordava com a dedução do patrão, o compadre jamais iria mandar buscar aqueles trastes. Os seus amigos mais íntimos eram da mesma opinião.

O João se decidiu aceitando a transação. Assim, ficando livre do que devia no seringal e ainda com um bom saldo e as passagens de ida e volta para o Ceará. Resolveu com sua mulher, trabalhar até o fim do fabrico obtendo mais dinheiro com a venda de sua produção.

Uma tarde quando retornava do trabalho encontrou em sua barraca um emissário do barracão lhe trazendo uma correspondência, ao tomar ciência do seu teor quase desmaia de susto e entrou em pânico, tratava-se do pedido de remessa dos motores de popa e as instruções como proceder. O João colocou a Maria como bode expiatório, atribuindo-lhe toda a culpa por seu vexame e as desgraças que lhe poderiam advir. Esta noite não conseguiu dormir, ao amanhecer, a Maria lhe disse ter uma idéia para se livrarem da medonha encrenca, mandaria dizer ao compadre John não ser possível cumprir o combinado porque os cupins havia comido os motores. O João esbravejou, chamou-a de louca por achar que o gringo era tão abestado para acreditar em tamanha estória, mais cabeluda do que um mapinguari. Porém ficou à amadurecer a idéia, resolvendo ir ao barracão se aconselhar e a submeter à opinião ao Guarda-livros. Este achou-a pai-d'égua,.uma brilhante solução. Redigiu o seguinte telegrama: "Estou impossibilitado remeter motores conforme suas instruções vg porque cupins os devoraram pt sds João Rodrigues vulgo das Onças pt".

Despachou um emissário para ir... à Abunã providenciar a remessa do telegrama.

Passaram-se algumas semanas sem novidades, João já estava mais tranqüilo quando recebeu outra correspondência, o americano pediu lhe que enviasse uma amostra do bicho que havia devorado os motores para juntar como prova ao seu relatório. João orientado por Maria acondicionou em uma caixa de madeira, um ninho de cupins e endereçou ao Consulado Americano em Manaus, para ser remetido ao John. A caixa foi despachada do seringal para Abunã, aí ficou uns dias no armazém aguardando sua vez para ser despachada no trem da EFMM, para Porto Velho/RO, aonde permaneceu algumas semanas para ser embarcada no gaiola Rio Mar até Manaus e daí, em um cargueiro da Loid com destino à New York. O John com a guia de despacho foi a alfândega para receber a sua encomenda, ao ser aberto o porão do navio as autoridades americana ficaram apavoradas, este tinha grande parte recoberta pela casa dos cupins. Pediram explicações sobre o que viam, a John, este disse tratar-se de um bicho da amazônia que se alimentava de ferro. Imediatamente mandaram fechar o porão e determinaram que o navio desatracasse do porto e permanecesse estacionado a quinhentos metros de distância do litoral até segunda ordem. Na edição da tarde, num furo de reportagem, o jornal New York Time, trazia em manchete de primeira página: "Navio, brasileiro estacionado no porto tem seu casco devorado por inseto amazônico que se alimenta de ferro". A noticia explodiu como uma bomba atômica, a cidade estava ameaçada, correndo o risco de ter as estruturas de seus arranha-céus devoradas pelos insetos, da mesma forma os trens, metrô, pontes, o próprio arsenal bélico, etc, etc. O Presidente convocou uma reunião extraordinária do Ministério para avaliar a situação. A CIA foi acionada para verificar se não se tratava uma estratégia terrorista do comunismo internacional via Brasil; o Pentágono foi incumbido de pesquisar junto com as Universidades a criação e fabricação de uma arma eficaz com poder de deter e destruir o inimigo vindo da floresta amazônica. Houve pronunciamento de protestos contra o Brasil na Câmara e no Senado. O John passou a ser o centro das atenções, entrevistado pela mídia e requisitado a proferir conferência sobre o emitente perigo. Um livro de autor desconhecido, intitulado "O Cupim", teve suas edições esgotadas, tornando-se best-seller e seu criador ficou rico e famoso da noite para o dia.

Enquanto nas selvas do Abunã, João e Maria de volta do seu merecimento passeio ao Ceará, alheios à celeuma internacional da qual foram protagonistas, continuavam a vida rotineira do seringal, felizes por não terem mais sido incomodados pelo compradre John, graça ao CUPIM comedor de ferro.

 

Glosário:

1 - Colocações - barraca no interior da floresta construída com folhas de palmeiras (palha) e ripas do caule desse vegetal (paxiuba), moradia dos seringueiros;
2 - Barracão - grande construção de madeira coberta de telha, zinco ou palha, sede administrativa do seringal;
3 - Estrada - vereda no interior da floresta interligando as seringueiras;
4 - Cavernada - dança de homem com homem por falta de par feminino;
5 - Poronga - lamparina com um anteparo curvo na parte trazeira protegendo a chama do vento e permitindo iluminação só para a frente, usada pelo seringueiro encaixada na cabeça, como um capacete, para iluminar a noite a estrada de seringa, facilitando o seu trabalho de corte e reconhecimento do látex;
6 - Brabo - pessoa recém-chegada ao seringal, desconhecedora total de suas atividades e da vida na floresta.

Fonte: Abnael Machado de Lima 
Membro dda Academia de Letras de Rondônia

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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